O buraco é mais embaixo



Falta de manutenção? Não é bem assim. A culpa pela péssima situação nas estradas passa por erros primários de projeto, má-fé na construção e incompetência pública e privada.

No dia 14 de maio, o governo Lula anunciou uma verba especial de 873 milhões de reais para o ministério dos transportes investir prioritariamente na recuperação das rodovias federais. Como no anúncio de pacotes semelhantes no passado, surgiram na imprensa casos de estradas esburacadas, acidentes provocados pelas péssimas condições da pista e todo tipo de calamidade ligada às rodovias. De novo viu-se o jogo de empurra entre empreiteiras e Estado para achar o culpado da situação. E de novo o contribuinte, que paga a conta, fica perplexo: afinal, por que as estradas brasileiras são tão ruins?

A resposta mais tradicional é que o país tem pouco dinheiro para fazer a manutenção das rodovias. Ninguém nega o fato, mas o buraco é mais embaixo, bem mais embaixo. Ernesto Heinzelmann, presidente da Embraco, maior fabricante de compressores para geladeiras do mundo, baseada em Joinville (SC), descobriu isso da pior maneira. Em 1999, ele perdeu seu sobrinho e afilhado num acidente provocado por aquaplanagem na BR-101, que cruza Santa Catarina. O estranho é que a rodovia acabara de ser duplicada. Ele falou sobre o caso com seus colegas de diretoria da Associação Comercial e Industrial de Joinville (ACIJ). Após tentar sem sucesso alertar os representantes locais do DNER (Departamento Nacional de Estradas de Rodagem) para os problemas da obra, a ACIJ montou uma equipe de técnicos independentes, que fez um laudo sobre o trecho de 111 quilômetros entre Itajaí e a divisa com o Paraná.

“Quando vimos o relatório ficamos espantados”, diz Moacir Thomazi, presidente do jornal A Notícia, de Joinville, e então presidente da ACIJ. “Havia trechos com problemas de drenagem que em dias de chuva formavam uma piscina. Em vários lugares, o asfalto já apresentava fissuras, apesar de a estrada ser nova.” Entregue à Procuradoria da República na cidade, o laudo, com quase 1000 páginas e que custou cerca de 100000 reais, virou a base de um inquérito civil em andamento até hoje. Ele retrata problemas bem conhecidos pelas pessoas ligadas ao setor de construção de rodovias, mas que se mantêm ocultos para os motoristas – ocultos até porque todo pavimento é uma estrutura enterrada, da qual só se vê a superfície. É nessa obra que não se vê que muitas vezes está a origem do buraco em que seu carro vai passar.

Sob as rodas do automóvel, há um pavimento com várias camadas de materiais diferentes, podendo atingir mais de 1 metro de profundidade. Ele começa com a terra compactada, tem duas ou três faixas intermediárias, que podem ser formadas por brita ou uma combinação de terra e cimento, e termina com o chamado concreto asfáltico, mistura de asfalto com brita pequena e areia.

Para cada tipo de solo, traçado e volume de tráfego da estrada, será projetado um pavimento diferente, variando a espessura das camadas e o material que elas contêm. É um trabalho que exige ensaios de laboratório e mudanças mal estudadas na composição podem provocar buracos no futuro. No Brasil, pouco se faz do primeiro item e muito do segundo. “Normalmente, mais da metade dos problemas que analisamos em estradas se deve a erro de projeto ou de execução da obra”, afirma o engenheiro Rubens Vieira, chefe do Agrupamento de Infra-estrutura Viária, Impermeabilização e Obras do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo). “Uma estrada bem feita, mesmo com manutenção precária, será melhor que outra com manutenção constante, mas mal feita.”

No inquérito da BR-101 afirma-se que o projeto não avaliou corretamente o solo da região. No meio da execução, a empreiteira Equipav disse ao DNER que precisava trocar o material argiloso previsto por um tipo de pedra. Mais tarde, a empreiteira, com a anuência do DNER, diminuiu uma camada intermediária de 14,5 para 10 centímetros, e a capa asfáltica (a camada que está em cima), de 9,5 para 5 centímetros. Em outro trecho, conduzido pelo consórcio de empreiteiras Conserva/Tamasa, houve reduções similares. O que aconteceu? Um pedaço de 6 quilômetros da estrada apresentou trincas e afundamento e teve que sofrer reparos pouco após a inauguração. O laudo da associação de Joinville alertava que a vida útil desse pavimento cairia dos dez anos normais para apenas quatro anos, caso não se realizasse um recapeamento. Boa parte das reformas acabou sendo feita, embora ainda persistam alguns pontos de aquaplanagem.

O caso da BR-101 é raro, talvez o único do país, em que uma entidade independente fez um estudo técnico de rodovia. Normalmente, os inúmeros processos que correm na burocracia do Estado se debruçam sobre o aspecto financeiro das obras. Aliás, não faltam superfaturamento e outras discrepâncias monetárias. “Vejo isso quase sempre e fico indignado”, diz um engenheiro gaúcho, prestador de serviços para empreiteiras, que prefere manter-se no anonimato. “Nas obras, uma camada de pavimento de 10 centímetros vira 8 centímetros, o transporte de dois caminhões de terra é cobrado como tendo sido de três, a empreiteira dá qualquer 1000 reais na mão do fiscal e fica por isso mesmo.”

Mesmo o governo, sempre refratário às críticas, reconhece sua parte na culpa. “O modelo atual de gerir o negócio de construção de estradas não dá certo”, diz o ministro dos Transportes, Anderson Adauto, que está no cargo desde janeiro e admite que houve “barbeiragem” no trecho da BR-101. E como as coisas funcionam hoje? Para início de conversa, o Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes (DNIT), órgão que substituiu o DNER (extinto em 2002, em grande parte pelo volume de denúncias de corrupção), não faz projetos detalhados das obras. Hoje, eles se parecem com cartas de intenção genéricas, o que dá margem a mudanças de última hora no canteiro de obra.
A fiscalização acurada dos serviços é uma miragem. O DNIT sequer tem um departamento de fiscalização. O trabalho é feito por empresas terceirizadas, sistema que o órgão pretende mudar com a criação do cargo de fiscal. “Falta gerenciamento adequado e comprometimento com uma gestão profissional e ética”, afirma José Antônio Coutinho, diretor-geral do DNIT.

Outro problema é o excesso de peso dos caminhões. Existem 70 balanças nas rodovias federais brasileiras. Mas apenas seis funcionam, o que faz com que o excesso de peso dos caminhões vire rotina. O peso extra gera trincas no piso que mais tarde, com a penetração de água (o pior inimigo da estrada de asfalto), fazem o pavimento entrar em colapso. Estudos do Ministério dos Transportes indicam que um excesso de carga de 20% a 30% pode reduzir em até 60% a vida útil de uma rodovia.

O fim pode chegar antes. O trecho duplicado de 54 quilômetros da Rodovia Fernão Dias entre São Paulo e Atibaia foi entregue em março de 2002. Pouco mais de um ano depois, os buracos dominam várias partes da pista. “Falta fiscalização da carga dos caminhões”, diz Carlos Alberto La Selva, gerente do Corredor Mercosul, programa do Ministério dos Transportes responsável pelo gerenciamento da rodovia. La Selva culpa ainda o volume de tráfego acima do esperado, que exigiria um piso mais resistente na Fernão Dias. Em outras palavras, alguém, lá atrás, cometeu mais um daqueles erros de projeto.

A falta de verbas para manutenção não é a principal explicação para a degradação das estradas, mas não pode ser desprezada. Em 1975, o país gastava 1,8% do Produto Interno Bruto com transportes. Hoje, o orçamento é inferior a 0,3% do PIB. Para 2003, a verba do Ministério dos Transportes é de 1,7 bilhão de reais, que, descontadas as despesas de pessoal, resulta em 1 bilhão de reais para investimentos. Acontece que para deixar os 55000 quilômetros de rodovias federais pavimentadas em bom estado seriam necessários 5,5 bilhões de reais, nas contas do Ministério.

Se o dinheiro é escasso, ele também não é aplicado de forma inteligente. Pela legislação atual, ao contratar uma empreiteira, o governo não paga um valor fechado pela rodovia. Ele calcula o preço separado de cada serviço e no final soma tudo. Numa obra, são calculados os metros cúbicos de terra deslocados, os quilômetros rodados pelos caminhões, o metro linear de tinta, e por aí vai.

É como se você entrasse numa concessionária e tentasse descobrir quanto custa um carro pelo valor unitário das peças. “O preço final fica astronômico e torna-se quase impossível fiscalizar os gastos”, afirma o ex-deputado federal Israel Pinheiro, assessor especial do Ministério dos Transportes. É dele a autoria de um projeto de lei de 1997 que estabelecia a contratação por preço fechado.

Havia outra novidade na lei. A construtora também precisaria fazer um seguro da perfeita execução da obra. Ou seja, se a estrada não ficasse de acordo com o edital, a seguradora bancaria a reconstrução. Esse dispositivo existe nos Estados Unidos e se chama performance bond. Assim como o motorista que não se envolve em acidentes ganha bônus a cada renovação do seguro do seu carro, as empreiteiras receberiam descontos nas apólices por fazer estradas de qualidade. Quanto melhor o histórico nas seguradoras, maiores as condições para vencer novas concorrências públicas, fechando o círculo virtuoso. O performance bond também criaria um novo fiscal: a própria seguradora. “Ela iria acompanhar a obra com rigor para minimizar o risco de ser obrigada a desembolsar o dinheiro da reconstrução”, diz Pinheiro.

Por enquanto, a vantagem está com quem não quer ser cobrado pela competência. “As construtoras grandes são até favoráveis ao projeto, mas as médias não”, diz o ex-deputado. “Elas têm um lobby poderosíssimo.” O texto foi aprovado por comissões da Câmara dos Deputados, mas nunca foi a plenário para votação. Depois de arquivado, o projeto ressuscitou em 1999 pelas mãos do deputado Fernando Gabeira (PT-RJ), mas está longe do capítulo final.

Para minimizar os problemas, há quem pense em privatização. Hoje, o país tem 9700 quilômetros de rodovias repassados à iniciativa privada e a qualidade delas é boa ou ótima em quase todos os casos. Segundo o governo, as concessões podem chegar a 20000 quilômetros, apenas em nível federal. O sistema permite que o governo arrecade com a venda do direito de concessão e possa concentrar seus gastos nas outras estradas. (Também costuma deflagrar uma epidemia de postos de pedágio, mas essa é outra história.) Nas rodovias que não têm volume de tráfego suficiente para atrair a administração privada, pode-se intensificar uma modalidade de contrato de conservação inaugurado no governo Fernando Henrique. Em vez de receber para tapar buracos emergenciais, a empresa fecha o negócio para manter a rodovia em bom estado por um período de até cinco anos. Ou seja, na hora de fazer o serviço, a empresa vai se esmerar para fazê-lo bem feito. Hoje, pode acontecer o contrário, pois o remendo de qualidade discutível vira o serviço garantido no futuro. A prática foi adotada com bons resultados em Minas Gerais num trecho de 424 quilômetros da rodovia BR-040 que vai da divisa com Goiás até a cidade de Curvelo. É a prova de que o buraco pode ser mais embaixo, mas que o caos nas estradas brasileira não é um poço sem fundo.

Estrada da perdição

Quais são os erros mais comuns na construção de uma rodovia que, lá na frente, se transformarão em todo tipo de problema



1. Chão mole

Erro: Depois de uma chuva, a empreiteira não espera a terra secar suficientemente antes de fazer a compactação do terreno

Conseqüência: No começo não se nota nada, mas depois de alguns anos a terra afunda e cria valas no asfalto


2. Pedra no caminho

Erro: A camada de brita é composta por pequenas pedras de vários tamanhos. É fundamental – e trabalhoso – compactar bem o material. Não é o que acontece sempre

Conseqüência: Prepare-se para afundamentos, trincas

e buracos no asfalto


3. Mistura fina

Erro: Muita vezes, a brita recebe uma camada de solo cimento, que é terra misturada com cimento. Cada tipo de solo e utilização da pista exige “receita” própria. Por economia ou incompetência, erra-se na quantidade dos ingredientes

Conseqüência: O terreno tende a ceder com o tempo

e as valas aparecem


4. De mal a pior

Erro: Os engenheiros são quase unânimes em dizer que a qualidade do asfalto produzido no Brasil está cada vez pior. Nesta camada, ele é misturado com brita. Tudo fica comprometido se, ruim como ele é, o asfalto não aderir bem às pedras

Conseqüência: A fragilidade do asfalto com brita provoca a degradação precoce da camada superior, a pista propriamente dita


5. Estrago final

Erro: A última camada do pavimento, o concreto asfáltico, é basicamente uma mistura de asfalto, brita pequena e areia. Por vezes, os fornecedores desse material são trocados no meio da obra sem os devidos testes de qualidade

Conseqüência: O concreto asfáltico perde as características corretas para aquele trecho. Ele pode ficar mole demais, gerando ondulações na pista, ou rígido em excesso, o que provoca trincas e buracos.

Tem solução?

SIM

Como resolver quatro dos principais problemas:

Problema

O custo final de uma obra é calculado pela soma de cerca de 1600 tipos de serviço executados pela empreiteira. A fiscalização torna-se difícil e há aumentos freqüentes no valor previsto

Solução: Existe um projeto de lei no Congresso que prevê a contratação de obras a preço fechado, sem possibilidade de acréscimos durante a construção


Problema Erros de execução são comuns, mas as empreiteiras não se responsabilizam pelas falhas, que caem na conta do governo

Solução: O mesmo projeto determina que a empresa tenha um seguro contra a má execução da obra, para cobrir eventuais custos de restauração ou reconstrução. A empreiteira também se responsabilizaria pela manutenção da rodovia por cinco anos


Problema

Não há fiscalização efetiva das obras. Hoje ela é feita por empresas terceirizadas ou por engenheiros do DNIT, que são poucos e trabalham em condições precárias

Solução: O Ministério dos Transportes fez convênios com Exército, Caixa Econômica e Conselhos Regionais de Engenharia e Arquitetura para utilizar seus engenheiros e ampliar a fiscalização


Problema

Faltam pelo menos 4,5 bilhões de reais para o Ministério dos Transportes deixar em bom estado todas as rodovias federais brasileiras

Solução: A Cide, contribuição paga pelos motoristas sobre o consumo de combustível, iniciada em 2002, já arrecadou 10 bilhões de reais. Basta regulamentar o seu uso e, com isso, liberar a verba, hoje retida no Ministério da Fazenda

Fonte:  www.guiadotrc.com.br

Comentários

  1. Não só falta dinheiro para as estradas como tb para a energia, saneamento básico, saúde e educação.
    Mas para viajar pelo mundo, inaugurar placas e pedras passsear levando a corte e a papagaia de pirata não falta um centavo.

    Um perfeito Bufão!!!!

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